sábado, 31 de dezembro de 2016

Papai Noel

Conseguir um emprego foi mais fácil do que imaginava. Mais vale um amigo na praça… Justo esse amigo, parceiro de dominó, descolou o emprego. Trampo maneiro, com direito a almoço e merenda. No começo ficou meio sem jeito, envergonhado a bem dizer, quando se viu naquela roupa, com aquela barba. Nunca tirou tanto retrato. Inda bem que gostava de criança. Logo conquistou todo mundo. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Finalmente tomou tenência na vida, dizia a mãe agradecendo a todos os santos de sua devoção. Resolveu passar o réveillon na praia com a namorada. Outra pessoa. Cabelo cortado, barba aparada, relógio de ouro no pulso, corrente de ouro no pescoço. Aproveitou muito bem o benefício da saída temporária.
(Contarelo, de As Culhudas de Seu Portelo)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Cozinha de Portela

Muitos amigos cobram as receitas da “Cozinha de Portela” que publicava no Quinto Pecado, meu blogue de comidas que foi descaradamente roubado. De nada valeram as muitas tentativas de recuperá-lo. Então, retorno hoje às receitas. Que tal um prato exótico para o paparicho do Ano Novo?

Vamos, então, ao Javali.

Você vai precisar de 1 lombo de javali de mais ou menos 1,5 kg, 3 dentes de alho triturados, 1 xícara de sucos de limão, 500 gramas de margarina culinária, sal e pimenta-do-reino a bom paladar.

Agora você vai preparar um molho com sal, pimenta-do-reino, alho, suco do limão e temperar o lombo do javali deixando tomar gosto por no mínimo 12 horas. Pronto. Coloque o lombo numa assadeira untada com a margarina e asse em forno quente (180 graus) por 49 minutos, regando de vez em quando com o caldo do cozimento. Retire o lombo do forno, deixe esfriar e corte em fatias finas. Numa panela funda coloque o suco do cozimento que ficou na assadeira, junte as fatias do lombo e leve ao fogo para apurar. Coloque numa travessa e sirva.

E os acompanhamentos?

Que tal o Molho do caçador de javali

Você vai precisar de 6 cebolas grandes picadinhas, 3 colheres de sopa de glucose de milho, 3 colheres de sopa de azeite doce, ½ colher de chá de mostarda em pó, ½ colher de sal, ½ colher de chá de páprica picante, ½ colher de chá de pimenta-do-reino e ½ colher de chá de noz-moscada.

Agora você vai pegar uma panelinha e aquecer o azeite doce e dourar a cebola. Mexendo sempre e delicadamente, acrescente pela ordem a glucose, a mostarda, o sal, a páprica, a pimenta- do-reino e noz-moscada. Assim que levantar fervura, retire do fogo e use com o lombo.

E a Banana assada do caçador de javali

Você vai precisar de 7 bananas da terra, 1 pote de maionese, ½ colher de chá de gengibre em pó, sal e pimenta-do-reino a gosto e noz-moscada para salpicar.

Agora você vai colocar as bananas inteiras com casca e tudo para assar no forno alto por cerca de 14 minutos. Enquanto isso, coloque numa tigela a maionese, junte o gengibre, o sal, a pimenta-do-reino e mexa delicadamente até formar uma pasta uniforme. Corte as bananas em rodelas, espalhe num refratário, cubra com a pasta e leve ao fogo por exatos 7 minutos. Salpique com noz-moscada e sirva.

Deixei para o fim o Arroz do caçador de javali

Você vai precisar de 2 xícaras de arroz branco cozido, 100 gramas de bacon cortado em cubinhos, 2 cebolas grandes picadas, 1 tomate grande picado, 5 dentes de alho picados, 1 pimentão verde grande picado, 1 pimentão vermelho grande picado, 1 pimentão amarelo grande picado, 1 molho de manjericão, ½ colher de chá de noz-moscada, sal e pimenta-do-reino moída na hora a bom paladar.

Agora você vai fritar o bacon em ponto de torresmo. Retire o torresmo com uma escumadeira e reserve, junte a cebola, o tomate, o alho e os pimentões mexendo levemente com um garfo grande. Arrume numa travessa, salpique com o manjericão e a noz-moscada e sirva.

Para beber, uma boa cachaça de rolha antes e durante uma cervejinha delicadamente gelada ou um bom Pinot Noir que harmoniza muito bem com o javali. 

sábado, 24 de dezembro de 2016

Natal

Para Nilton Castro

No presépio apenas o boi e o burro ruminando tranquilamente. Os Reis Magos voltaram cedo para seus reinos deixando incenso, ouro e mirra.
As casas à volta mexiam com a imaginação. Mesa farta, árvore luminescente, conversas, risos, algazarra de crianças e presentes, muitos presentes.
Maria levanta resoluta, olha para José, sorri e sai com o menino. Afinal a comemoração é pelo seu nascimento.
(Miniconto, de Poucas Palavras)

sábado, 26 de novembro de 2016

Reverso X

depois ela ligou pois esquecera
a solidão
na segunda gaveta da cômoda achei
uma caixinha
em formato de coração
liguei
ela recomendou que não abrisse
e que
por favor
olhasse se esquecera de mais alguma coisa
“sai tão apressada” justificou
algumas mágoas muitas lágrimas
segredos irrevelados
uma canção interrompida um beijo que deveria ter sido dado
ciúmes risos gargalhadas
restos de felicidade
recados deixados no espelho do banheiro
o batom borrado pelo vapor
será que ela ia querer
o do espelho da sala simplesmente dobrei
e guardei dentro de um livro de Haruki Murakami
“não tem como voltar atrás você sabe”

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Era só Bé que bem reparado nem nome direito é.
Sabia-se que era filho de Neném Magarefe, beque central do afamado Alfaiates Futebol Clube, terror da Baixa do Brejo, subúrbio ferroviário. E só.
Bé não só herdou o apelido como a fama do pai para quem, em babas ou jogos oficiais, “tanto faz”, do pescoço pra baixo tudo é bola.
- E né pra não sê não? - perguntava com um sorrisinho sorete.
A propósito, contam que ficou famoso de mesmo depois que fez um teste no Bahia, seu time do coração, levado pela mão apadrinhadora de Everildo Oliveira.
- Não fiquei não foi porque não fui aprovado não, hum...
E bravateava.
- Os cara de sacanagem, vê se num foi não, mandaro eu marcá um tal de Marcorélio, ponta esquerdo que vei do Framengo. Ai na premera bola ele puco, passou por debaixo de minhas perna e se picou... Na segunda eu caí de bunda no chão... Olhei pros home, tudo com cara de desaprovo.
Aí eu disse comigo mesmo vem sacana, vá...           
O cara parece até que escutou, pegou a bola, balançou, deu uma risada pra minha cara, e olhe qui eu fico puto quando nego ri pra minha cara, e ameaçou, somente ameaçou porque na segunda balançada peguei de rijo, dei um chega pra lá que o desinfeliz foi cair lá na casa da disgraça…
Para, olha para os interlocutores e pergunta: “Tava certo ou num tava?”.
A foto com a camisa do Bahia no dia do treino até hoje é mostrada orgulhosamente, mesmo que ninguém duvide da história.          
Mora a um tiro de canhão do Bar de Mano o que muito facilita os “peraí qui eu amostro”.
Eis que num domingo depois do BAVI, como era de lei, Bé parou no Bar de Mano pra tomar uma e tirar um sarro, mesmo o jogo ter terminado num zero-a-zero morrinha, mas que o deixou quase sem voz.
- Nem um gol sozinho, porra!
O bar tava lotado. Gritos, cantos, risos, gozações, afinal o Bar de Mano afamou-se justo por ser um espaço etílico-desportivo tão democrático que o tira-gosto principal, “pititinga frita no dendê com aipim frito na pimenta”, tem o nome de BAVI.
Foi saudado como nunca fora nos muitos anos que frequentava o lugar.
Desconfiado, chamou dona Dedé no cantinho e indagou.
Não tinha visto sua foto no jornal ao lado de Ronaldo Fenômeno, quando ele visitou a Arena Fonte Nova¹ em cuja obra trabalhava com orgulho e dedicação “fazeno a nova casa do Esquadrão”. 
Pegou o jornal, olhou, reolhou, sorriu, emocionou-se, pediu um cambuí e desligou num canto do balcão.
De repente Neném Carpinteiro chega junto de Bé e ergue o copo como se brindasse:
- Você sabe que Ronaldo prometeu um jogo com vocês quando a Arena ficar pronta?
O silêncio foi na conta de Bé dá um gute no cambuí e avisar pra galera.
- Só não me bote pra marcar aquele porra não, qui eu não vô dá mole!
_____________________

¹O Complexo Esportivo Cultural Octávio Mangabeira, conhecido como Arena Fonte Nova ou Itaipava Arena Fonte Nova, substituiu o estádio Octávio Mangabeira, carinhosamente chamado de Fonte Nova, inaugurado em 28 de janeiro de 1951. No dia 4 de março de 1971, foi reinaugurado depois da construção de um anel superior que elevou sua capacidade para 80.000 torcedores. Implodido no dia 29 de março de 2010, foi reinaugurado no dia 5 de abril de 2013, recebendo jogos da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014.
(Causo, de Bola Dividida)

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Bem-casado

Tudo indicava que aquele seria um dia muito especial. Do jeito que o diabo gosta, como gostava de dizer. Observou os ônibus e escolheu um sem cobrador. Quando o ônibus entrou por uma via pouco movimentada, anunciou o assalto. Arma em punho foi fazendo a limpa: dinheiro, relógio, celular e tudo mais que tivesse valor. Aceito boné e tênis, desde que tenha grife. Baixa a cabeça, porra! Ninguém pode olhar pra minha cara não que dá azar! Estava descendo quando observou que uma senhora colocou um pequeno embrulho na bolsa. Qué issaí, tia? É um docinho que vou levando pra minha netinha. Sabe que eu gosto muito de docinho? Arranca o pacote da mão dela e come gulosamente. Moço chegou meu ponto posso descer? Ele hesita, mas permite. Ela levanta e com muita dificuldade se arrasta até a porta, tempo suficiente para que o meliante comece passar mal. Peraí motor que nestante ele morre. Eu ia levando pra minha filha que descobriu que o marido tava traindo ela. Ele é louco por esse doce.
(Contarelo, de As Culhudas de Seu Portelo)

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Fonte Nova

 Panorama Internacional Coisa de Cinema
Fonte Nova chega nos cinemas. 
Domingo (13/11) e Segunda (14/11)
 Não deixe de ir. Leve os amigos

O franco-atirador

Para João Paulo Maia Mendonça

Como era de costume, todo dia e como sempre, parava na porta da escola.
Ficava espreitando pela fresta do portão, sonhando coisas que só ele sonhava.
Ninguém nunca o vira sorrir.
Um dia ganhou um revólver.
Postou-se na pracinha que tem em frente à escola, e se escondeu atrás de uma árvore. Ninguém achou estranho, pois estavam acostumados a vê-lo todo santo dia.
Apontou o revolver para as crianças que saíam da escola.
Sorriu.
A arma era de mentira, mas o ódio era de verdade.
(Miniconto, de Poucas Palavras)

No dos outros é refresco

Pimentas
Foto de Geraldo Portela
“Esse molho arde?”

Essa pergunta é feita com muita freqüência por aqui, porque para nós baianos todo molho é de pimenta e o resto é caldo, que de resto é molho, ou seja, lá pelas bandas do sul, mas sob o mesmo céu de anil.

Por isso aqui na Cidade da Baía é comum se ouvir: “bota uma colherinha do caldo dessa carne, aqui” ou “bota um tiquinho do caldo dessa moqueca, mãe” ou ainda “gosto muito de fígado [bife de fígado] com arroz e um caldinho por cima”.

Todavia, um parêntese se faz necessário para contar que quando Pedr’Álvares chegou por aqui naquela ensolarada tarde de abril e foi recebido por aquela gente alegre e festiva ficou sem entender o porquê de tanta alegria, pois esperava encontrar um povo carrancudo e hostil como o de alhur. Nem desconfiava o gajo que aquela gente tinha aquele jeito alegre de ser porque comia pimenta, muita pimenta, de tudo quanto era jeito, forma e qualidade, já que a dita abundava como abunda nos quatro cantos da outrora terra de Santa Cruz.

Estudos posteriores revelaram que a pimenta faz muito bem à saúde, por diminuir o estresse, aumentar o tesão, combater a depressão, reduzir o colesterol, elevar a sensação de euforia o que da para entender a malemolência e o bom humor dos baianos maldosa e preconceituosamente confundidos com preguiça e irresponsabilidade.

“Esse molho arde?”

Não fique esperando a resposta. Apenas observe atentamente seu interlocutor para não cair no esparro, porque ela será dada de esguelha, com um sorrisinho sorete.

Esclarecido, pois, vamos aos molhos com seus sabores, segredos e fazeres, lembrando que molho nessa terra de Todos os Santos não é só uma simples mistura de pimenta com ingredientes variados. Vai mais além, muito mais do que possa imaginar a vossa vã gastronomia.

Há algo de ritualístico no trato com essas frutinhas coloridas, de sabor inigualável, ardor apaixonante e poderes misteriosos que viçam por esse Brasil afora deste antanho, a começar pela vasilha em que o molho vai ser preparado que deve ser de barro não vitrificado, um alguidar pequeno cai bem, no qual se coloca um punhado de sal, um bocado de pimenta e se machuca [amassa ou rala] com um machucador de madeira até virar uma massa uniforme à qual se juntam outros e necessários ingredientes de acordo com o molho que se pretende fazer.

São mais de 100 espécies com picâncias variadas.

Nos quefazeres do dia a dia aqui na terra de Todos os Santos usam-se não mais de três ou quatro variedades que dão cores e sabores especiais aos comeres, sejam eles de mesa ou de tabuleiro, começando pela fantástica Malagueta, pequena e fina, vermelha ou verde, com grau de picância variando de 50.000 a 100.000 unidades de Scoville¹; a diabólica Cumari (cumarim ou cumbari) pequenina, vermelha, verde ou amarela com 30.000 a 50.000 unidades; a aromática Pimenta-de-cheiro, amarela ou vermelha, que mais se assemelha a pitanga com elegante picância de 10.000 a 23.000 unidades e a intrigante Dedo-de-moça (Chifre-de-Veado), comprida e suavemente curvada na ponta, vermelha ou amarela, com picância entre 5.000 a 10.000 unidades.

Pronto para encarar?

Atá ou Molho de acarajé
Bote um punhado de pimenta-malagueta verde pra secar e machuque com sal, camarão seco catado e um pedaço de jinjibre até formar uma massa uniforme. Ao depois, aqueça azeite-de-cheiro e refogue a mistura deixando fritar um pouco.
[Atá, corruptela de ataré, nossa  pimenta-malagueta em substituição a malagueta africana]

Molho de pimenta-malagueta
Bote num alguidar um punhado de sal e machuque um bocado de pimenta-malagueta verde, camarão seco catado e um pedaço de jinjibre até formar uma massa uniforme. Aqueça azeite-de-cheiro, refogue um pouco de cebola picada,  junte a massa de pimenta, camarão e jinjibre, misture tudo rapidamente e tire do fogo antes de levantar fervura.

 Molho de pimenta-malagueta tradicional
Bote num alguidar um punhado de sal, pimenta-malagueta verde, pimenta-malagueta vermelha e machuque bem até formar uma massa uniforme. Acrescente suco de limão para diluir e diminuir a consistência.
[Há quem acrescente rodelas finas de cebola e/ou de tomate vermelho]

Molho com camarão
Pegue camarão seco catado, junte jinjibre, pimenta-malagueta verde, cebola e passe tudo na máquina de moer carne com a peça número um. Ao depois, misture tudo num alguidar com azeite-de-cheiro e deixe no fogo, sem parar de mexer com uma colher de pau,  até obter um molho espesso.

Molho lambão ou Molho nagô
Bote num alguidar um punhado de sal, um pedaço de jinjibre, um bocado de pimenta-de-cheiro, pimenta-malagueta verde, pimenta-malagueta vermelha, camarão seco catado e machuque até formar uma massa uniforme. Acrescente suco de limão e mexa para diminuir a consistência. Ao depois junte cebola, tomate, pimentão, coentro e cebolinha, tudo bem picadinho.
[Há quem acrescente quiabo e jiló cozidos]

Molho caseiro com vinagre
Bote num alguidar um punhado de sal, um bocado de pimenta-malagueta vermelha e machuque bem. Ponha azeite doce, vinagre, mexa um pouco para diminuir a consistência e junte rodelas de cebola e um raminho de coentro para enfeitar.

Molho caseiro com alho e limão
Bote num alguidar um punhado de sal, um bocado pimenta-malagueta vermelha e um dente de alho. Machuque até formar uma massa uniforme. Acrescente suco de limão e mexa para diluir a massa. Na hora de servir, enfeite com rodelas de cebola.

Molho de Vovó Cora
Bote num alguidar um punhado de sal, pimenta-malagueta verde, pimenta-malagueta vermelha, pimenta-de-cheiro e machuque tudo até formar uma massa uniforme. Diminua a consistência com suco de limão e azeite doce para carnes e peixes; com caldo de feijão para feijoada e com caldo de verduras para cozido.
 ________________________________________
 ¹ Escala criada pelo químico americano Wilbur Scoville. Cada “unidade Scoville” refere-se à quantidade de vezes que um extrato de pimenta dissolvido em álcool precisa ser diluído em solução de água e açúcar para ser neutralizado.

Sem Tempo

(Foto de Geraldo Portela)

sábado, 5 de novembro de 2016

A última ceia

Durante toda a tarde daquela quarta-feira dedicou-se aos preparativos do jantar encomendado com alguma antecedência. Cuidou pessoalmente de cada detalhe. Acompanhou a preparação de todos os pratos, das entradas de pão ázimo com especiarias e frutas cristalizadas, ao prato principal - um peixe à romana com molho de alcachofras de Jerusalém. Dedicou especial atenção ao Tatin de tâmaras com flores de lavanda, a sobremesa preferida do Mestre.
Nada de vinho. Recomendou ao sommelier que apenas dispusesse algumas jarras com água ao lado da mesa, como pedira Felipe.
Pouco antes da primeira vigília Maria de Magdala chegou acompanhada de  Felipe e Judas Iscariotes. Como sempre checou tudo com minuciosa atenção. Conhecia o Mestre e sabia o quanto era exigente, principalmente nos detalhes.
- O Mestre irá celebrar essa ocasião apenas com os seus doze apóstolos, portanto nenhum serviçal deverá ficar para servi-los.
Os apóstolos foram pontuais. Sabiam que Ele não tolerava atrasos. Espalhados pelo imenso salão da casa dos pais de João Marcos, emprestada para a ágape, tentavam entender por que quis celebrar a Páscoa dois dias antes.
Acontece que corria à boca pequena uma história atribuída a Lucas, “que sábado, quando pregava numa sinagoga, disseram-lhe que Herodes queria matá-lo”.
A resposta do Mestre teria sido desconcertante: “Digam àquela raposa, que eu estarei expulsando demônios e fazendo curas hoje e amanhã e no terceiro dia terminarei minha missão”.
O burburinho que se seguiu chamou a atenção do Mestre que se acercou do grupo.
- Um profeta não morre longe de Jerusalém.
Jamais passaria pela cabeça dos apóstolos que Ele sabia que seria preso nesta noite ainda.
No dia seguinte, à hora primeira, tomou conhecimento da prisão do Mestre e que Judas Iscariotes, encarregado de pagar as despesas, havia se enforcado.

(Inspirado em Lucas 13:31-32)

 (Miniconto, de Poucas Palavras)

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Crepuscular

 (Foto de Geraldo Portela)

Adágio

No meio da travessia um estranho nevoeiro se abate sobre a cidade formando uma cortina escura e espessa. As pessoas se assustam Não entendem o que está acontecendo. A ofuscante escuridão desatina suas mentes. Perdem a noção do tempo. Começam a caminhar sem rumo. Os fios da memória se embaraçam, formam uma louca ciranda de vozes, de gestos, de imprecações. De repente faz-se silêncio. Um silêncio ensurdecedor. Palavras se calam. Ouvidos sangram. O caos se instala. O silêncio desperta o medo. O medo traz a chuva. Uma chuva fina, fria e dilacerante como o vento norte que atravessa os corpos impiedosamente. As pessoas procuram desesperadamente um abrigo. Correm de um lado para o outro. A chuva aumenta. A noite avança célere rumo ao intérmino. O nevoeiro ergue uma barreira intransponível. O mar oculta as razões da travessia. As pessoas já não sentem medo, simplesmente porque nada mais faz sentido. Nada. 
(Segundo movimento de Sinfonia Insana Para Uma Cidade Intemporal)  

Canjibrina

Tomou todas. Tinha que voltar pra casa, era o jeito. A parceira, solidária, sacou a receita. O barulho do liquidificador quase explodiu sua cabeça. Engoliu a beberagem tapando o nariz. Enguiou. Vá vomitar lá fora quinda tô pagano o carpete. Deu conta da hora. Trocou de roupa às carreiras. Nem se despediu. Cravo na boca, óculos escuros, pasta debaixo do braço, nem parecia que tinha bebido. Cumprimentava todo mundo com o sorriso de sempre. Inda bem que ninguém percebeu. Até ele achou que tava sóbrio. Dispensou o elevador. Subiu a escada devagarinho. Seis andares. Suar faz bem nessas horas. Quem abriu a porta foi a esposa completamente nua. Lembrou-se da data. Todos os anos, no aniversário de casamento ela o esperava assim. Tirou a roupa imitando um gogoboy. Tá usando calcinha agora? A vista turvou, o sangue gelou, o corpo tremeu, a festa acabou. Só se lembra da mulher nua, aos prantos, toda vomitada num canto do sofá.

(Contarelo, de As Culhudas de Seu Portelo)

Reverso XVI

três mulheres passeiam pelas aleias de um imenso jardim
a de vestido de caça bordada branco é louca
a de vestido de crepe de seda azul natier é viciada
a de vestido de seda preto esvoaçante toca viola da gamba 
e mora com a mãe que é prostituta
que mantém a casa as filhas os vícios e os segredos irrevelados
mas quando morrer vai para o inferno
vaticina a tia-avó carpideira que cultiva lembranças torpes
- que assim seja

não...

três mulheres passeiam pelas aleias de um imenso jardim
a de vestido de caça bordada branco conversa com um lorde inglês
que se prepara para ir à caça da raposa
a de vestido de crepe de seda azul natier debruça-se sobre a fonte ornamental
e se vê entre coloridos peixes tropicais
a de vestido de seda preto esvoaçante executa o 1º movimento do concerto para fagote solo de rossini e mora com a mãe que é prostituta
que mantém a casa as filhas os vícios e os segredos irrevelados
mas quando morrer vai para o inferno
vaticina a tia-avó carpideira que cultiva lembranças torpes
- que assim seja

não...

três mulheres passeiam pelas aleias do imenso jardim
a de vestido de caça bordada branco absorta-se lendo maiakovski num barco conduzido por um jovem indiano de turbante branco com desenhos escarlates
a de vestido de crepe de seda azul natier senta-se num balanço ornado de guirlandas róseas e borda pirilampos enamorados
a de vestido de seda preto executa o concerto em si menor para violoncelo de dvorák 
e mora com a mãe que é prostituta
que mantém a casa as filhas os vícios e os segredos irrevelados
mas quando morrer vai para o inferno
vaticina a tia-avó carpideira que cultiva lembranças torpes
- que assim seja

não...